Filme singular na produção brasileira contemporânea, Segundo Tempo, quarto longa-metragem de ficção de Rubens Rewald, terá sua sessão de pré-estreia brasileira no Cine Brasília. O filme chega credenciado pela boa acolhida do Festival do Rio em 2019, nos Inffinito de Miami e NY, no Cinema Judaico de Boston, por fim no Festival do Cine Judaico de Punta del Leste em 2020, onde ganhou o prêmio de Melhor Filme Latinoamericano. Rewald já havia sido notado por obras anteriores, como Jair Rodrigues: Deixa que Digam, selecionado para os festivais É Tudo Verdade, In-Edit, Inffinito de NY e Miami e no de Cinema Brasileiro em Chicago (onde ganhou o prêmio de Melhor Filme pelo voto popular). Também ganhou destaque com #eagoraoque (2020), em parceria com Jean-Claude Bernardet, exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Festival de Cinema Latino de Toulouse, Forum Doc BH, Mostra de Tiradentes, entre outros.
Vale a pena sublinhar que Segundo Tempo tem vários elementos autobiográficos. Rewald vem de uma família de imigrantes. A família de seu pai veio da Alemanha, fugindo da Segunda Guerra Mundial, e a família de sua mãe veio da Hungria e da Turquia, fugindo da guerra entre a Turquia e a Grécia. Todos se conheceram em São Paulo durante a década de 1950, enquanto tentavam iniciar uma nova vida em um novo país. Segundo Tempo, embora completamente ficcional, carrega uma forte abordagem que deriva do imaginário pessoal e família do diretor. Rodado no Brasil e Alemanha, o filme conta com elenco e equipe técnica dos dois países e narra a tentativa dos personagens de reencontrar suas identidades através das histórias de seus antepassados. A tese de Rewald é a de que São Paulo é povoada por inúmeros migrantes e filhos de imigrantes. São eles que formam um caldeirão cultural único. No filme, os irmãos Ana e Carl partem para a Alemanha em busca de respostas para a reconstrução de suas histórias e identidades.
A Felicidade das Pequenas Coisas, de Pawo Choyning Darji, do Butão, chega ao Cine Brasília depois de repetir o fenômeno Gabbeh, de Mohsen Makhmalgaf, filme iraniano que permaneceu mais de um ano em cartaz em algumas salas brasileiras. A Felicidade seguiu por doze meses na telas dos cinemas Belas Artes em São Paulo. O que estaria por trás desse fenômeno? Muito provavelmente a delicadeza e a busca de uma existência genuína e pura. O diretor revelou que sua intenção ao decidir fazer o filme (sua estréia no cinema!) era simplesmente contar uma história específica sobre o atual momento do seu país numa circunstância específica no tempo. O Butão é considerado por muita gente o país mais feliz do mundo, mas, segundo ele, se vive numa espécie de armadilha entre tradição e modernidade. Muita gente no Butão se assemelha ao protagonista do filme.
Muitos não têm a noção de pertencimento. Acreditam que serão felizes longe de casa, em países modernos como a Austrália, os EUA e o Canadá. Muitos butaneses sonham com as luzes das grandes cidades. Esta foi a razão de Pawo querer contar a história do filme, uma história que vai na direção oposta. A personagem vai ser professor na região mais remota do Butão. O título original do filme é Lunana, que quer dizer “vale escuro”, o exato oposto de “luz”e o sentido do filme é, segundo o diretor, a descoberta que a personagem faz desse profundo processo interior: “só quem conhece a escuridão pode entender e valorizar a luminosidade, a luz.”
Também tem estreia no Cine Brasília Clarice Lispector: A Descoberta do Mundo, ensaio documental criado a partir de uma seleção de depoimentos da escritora Clarice Lispector e entrevistas com amigos e familiares em uma costura poética visual de trechos adaptados da sua obra. O filme contempla a exibição de material inédito e resgata a participação da escritora no programa Os mágicos, da TV Educativa, em dezembro de 1976. Neles e na série de depoimentos coletados vários aspectos da vida privada de Clarice são revelados pela primeira vez. Também fatos dramáticos, como o incêndio provocado por ela própria que queimou sua mão e braços, evento que mudou inteiramente a sua personalidade. O filme Clarice estará sempre acompanhado, como complemento da sessão do curta-metragem Escasso, de Clara Anastácia & Gabriela Gaia Meirelles, inaugurando o projeto de exibições de curtas brasilienses antes de longas-metragens.
Segue em cartaz o extraordinário Mato Seco em Chamas, dirigido por Adirley Queirós e Joana Pimenta. O filme foi exibido em dezenas de festivais internacionais e nacionais, amealhando aplausos, prêmios e críticas super favoráveis. O filme tem um enredo surpreendente e dialoga de forma devastadora com alguns dos acontecimentos políticos dos últimos anos no país. Um pouco da origem do filme se dá quando Adirley toma conhecimento de uma reportagem do jornal O Globo sobre a favela Sol Nascente, que, na ocasião, caminhava “para se tornar a maior do Brasil”. A favela, segundo o texto, havia surgido no começo dos anos 2000, quando uma “invasão” se formou no meio do mato, “nos confins de Ceilândia, a maior cidade-satélite de Brasília.
Mato Seco em Chamas, de Adirley Queirós e Joana Pimenta, se passa quase que inteiramente em Sol Nascente. Mais uma vez, Adirley se mantém fiel ao seu singularíssimo modo de criação e que, se valendo agora da colaboração da portuguesa Joana Pimenta, produz uma obra cujo tratamento cinematográfico e conceito não podem de forma nenhuma estar dissociados de um modo de produção onde documentário e ficção se mesclam de maneira extremamente orgânica. O filme trata de uma distopia social quase apocalíptica. Um crítico chegou a fazer uma analogia entre Mato Seco e Mad Max. Tem muito a ver. A história das irmãs Chitara e Léa é narrada também como uma lenda, quase uma alegoria, que transborda das celas da “Colmeia” – presídio feminino de Brasília – para a realidade.
Outro filme que compõe a nossa programação é Andança – Os Encontros e as memórias de Beth Carvalho. Remanescente da semana anterior, traz um importante protagonismo feminino e poderia muito bem fazer parte da mostra TODAS AS MULHERES.
A sambista Beth Carvalho dispensa apresentações. Mas Andança – Os Encontros e as memórias de Beth Carvalho nos faz ver que a muito mais a ser conhecido de sua personalidade artística e história. A cantora, que ajudou a tirar do anonimato muitos dos maiores sambistas da nossa história, foi criada na zona sul do Rio de Janeiro em uma família de classe média. Apesar de ter começado a cantar influenciada pela Bossa Nova e a tocar violão, ouvindo os acordes de João Gilberto, Elizabeth Santos Leal de Carvalho se consagrou no samba. Fã de Clementina de Jesus e Elizeth Cardoso – cantoras para quem dedicou seu primeiro álbum de samba (“Canto Por um Novo Dia”) – Beth se entregou aos ritmos da periferia e mudou a história do gênero musical mais popular do país. Além de sua atuação como cantora, esta torcedora fanática do Botafogo foi uma ardorosa militante, engajada nas mais diversas causas políticas progressistas.
Muito da riqueza de Andança – Os Encontros e as memórias de Beth Carvalho se dá pelo fato de Beth Carvalho – cinegrafista amadora – ter registrado as festas em família e os pagodes que freqüentava. Tudo isso deu origem a mais de 2000 horas de registros audiovisuais, decupados pelo diretor Pedro Bronz e roteirizados por ele com o auxílio do especialista em samba Leonardo Bruno. O nome do documentário homenageia uma das canções mais conhecidas da história da música popular brasileira, Andança. Composta em 1968 por três jovens músicos, Edmundo Souto, Danilo Caymmi e Paulinho Tapajós, Andança ficou em terceiro lugar no Festival Internacional da Canção – ficando atrás de Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores, de Vandré, e de Sabiá, de Chico Buarque, fazendo com que Beth Carvalho, então com 19 anos, se tornasse de imediato uma estrela da MPB/samba.
Permanece em cartaz o delicado Perlimps, animação que dá prosseguimento ao compromisso do cinema em ter sempre em sua grade filmes infantis. Obra de Alê Abreu, o mesmo realizador de O Menino e o Mundo, esta fábula não poderia ser mais oportuna: Claé (voz de Lorenzo Tarantelli) é uma jovem criaturinha do Reino do Sol parecida com uma raposa, mas que, na real, é um agente infiltrado na floresta, com a missão de captar os sinais e descobrir a localização dos Perlimps, únicos seres capazes de barrar o avanço do Capitão Dourado e da grande inundação, que ameaça a estabilidade da floresta. Enquanto realiza sua missão, Claé descobre que não está sozinha: Bruô (voz de Giulia Benite, a Mônica de A Turma da Mônica), uma criaturinha que parece um urso, oriunda do Reino da Lua, o está seguindo e acaba se juntando a ele na aventura, cuja trajetória ainda faz com que cruzem seus caminhos com o sábio João de Barro (voz de Stênio Garcia). As peripécias desses personagens nos fazem pensar em coisas muito sérias que afetam nosso mundo.
O filme ficará intercalado, e em continuidade, com o longa de animação infantil Tarsilinha, que, mais uma vez, poderá ser visto sempre nas sessões matutinas das 10h. É uma reivindicação legítima dos professores da rede oficial de ensino na volta às aulas agora em março. Esta magnífica animação de Célia Catunda e Kiko Mistrorigo, homenageia uma das principais artistas brasileiras, Tarsila do Amaral. A sua mais conhecida obra, O Abaporu, foi estopim para o Manifesto Antropofágico (1928), de Oswald de Andrade, que defende a criação de uma arte verdadeiramente brasileira e o rompimento com padrões culturais estrangeiros.
Curtiu a programação? Acompanhe os horários no site e aproveite para assistir importantes obras do audiovisual brasileiro ao longo da semana. Desde 2022, a casa do cinema brasileiro possui uma nova gestão compartilhada entre a OSC Box Cultural e a Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal. O espaço cultural segue sob a direção geral de Sara Rocha e curadoria de Sérgio Moriconi.